terça-feira, 21 de março de 2017

Os Dados da Maldição / EPISÓDIO 1

EPISÓDIO 1

[seriado em 6 episódios dominicais]                                             





OS DADOS DA MALDIÇÃO


Luiz Antonio Aguiar




Não se brinca com o MAL quando ele pode saltar fora do jogo e vir brincar com você!







13 de agosto, Sexta-Feira
e, para completar, Lua Cheia.
08:00 da Manhã


                 Nani acordou crente que aquele seria o SEU dia.
Afinal, era seu aniversário. 
13 anos.
Com o Fator Gogoia pairando no ar. 
... E mais todos os paparicos  que esperava receber do pai e da mãe. 
... E o ciumeco que contava causar em  seu irmão mais novo, o Zé, auto-intitulado Monstro, inconformado por ter de aturar Nani na posição de dono da festa. 
...E tudo o mais que todo mundo espera do seu aniversário. Pacote completo!
Só que não foi nada disso que aconteceu. 
Aquele seria o dia mais esquisito que Nani já havia vivido. 



Era sexta-feira.
                13 de agosto e Lua Cheia.
                Mas, não deveria ser um dia tão esquisito assim.
                Mesmo sendo um feriado meio repentino ...
... (Dani soubera do feriado pela mãe, na noite anterior, só não sabia que feriado era. E daí? Nem perguntou. Nem se lembrou de perguntar. Feriado é sempre mais do que ótimo, ponto final. Sabia somente que não teria colégio naquele dia, nem os pais iriam trabalhar, o que era legal porque estariam livres para trata-lo feito príncipe ...
... Pelo menos, foi o que ele acreditou que aconteceria.). 
Afinal, dia do aniversário da gente é para ser D++++.
Não deveria ser chamado de “esquisito”. 
Não, não deveria.
                Mesmo ele fazendo 13 anos nesse aniversário.
                Isso é o que pensava Nani, tentando entender onde tinha se metido a sua família, justamente naquela manhã, quando ele acordou e saiu do seu quarto crente que iria receber abraços, talvez um presente antes da festa e, melhor de tudo, o grunhido de ciumenta infelicidade do seu irmão caçula, mas...
                Em vez disso, encontrou tudo quieto, tudo silencioso.
                Como se não houvesse ninguém no apartamento.
                Mas, como faziam isso com ele? Abandonado no dia de seu aniversário? Será que esqueceram?
                - Não acredito! – exclamou, chateado. – Eles devem estar escondidos por aí, esperando eu sair pra pularem em cima de mim gritando “Surpresa!”.   Só pode ser!
                Deu uma geral na casa. Repetiu. Depois, busca pente fino. E nada!
                - Mas, que sujeira! – gritou.
                Seu grito ecoou sem resposta pelo apartamento.
                Não ia ter paparico. Nem café da manhã especial. Nem festa. Nem o prazer de flagrar o ressentimento do Monstro, naquele dia.
                Não ia ter nada. O dia tinha virado nada.
                Era verdade, ele que engolisse. Que se conformasse. A família havia largado dele no dia do seu aniversário. Foi-se. Sumiu desta dimensão. E lá estava Nani, ruminando sua mágoa, e sem saber para onde ir nem o que fazer.
Ele, o único habitante do apartamento vazio.
Ou, talvez, não fosse o único.



Grande Bazar, Istambul, Turquia,
 ± 25 anos antes


                O mercado de rua suk, em árabe - de Istambul é um labirinto que, segundo acreditam, cresce um pouco mais a cada noite. Somos admitidos nele por insuspeitas entradas. São portões, num fundo de rua, entre um paredão e outro, sem grande destaque no cenário urbano, e guarnecidos de grades de ferro. Nada que nos faça prever o que há ali dentro. E, quando vemos, somos envolvidos por uma cidade incrustada nas entranhas da outra cidade. Istambul é a hospedeira dessa criatura.
O difícil é saber quem comanda quem. 
Não há registros precisos de quando o Grande Bazar começou a surgir, como um agrupamento de pequenos negócios de rua. A história oficial nos fala do século XV, mas, há lendas que mencionam um mercado – que pode ter sido o Grande Bazar original – em Constantinopla, como se chamava Istambul, quando era a capital do Império Romano, no século IV.
E, antes disso, talvez... Mas, ninguém sabe. É uma memória que se perdeu.
A área central do Grande Bazar é a mais antiga. É também a mais escura, onde as vielas são mais estreitas, as lojas – tendas, stands precários – são menores e vendem as mercadorias mais bizarras.
Lucio era naquele tempo um jovem arqueólogo brasileiro, deslumbrado com tudo o que pudesse cheirar a mistério do passado. Era natural que fosse a Istambul - onde a história da civilização humana viveu momentos decisivos – para conhecer o museu arqueológico de lá, um dos mais fantásticos do mundo. Mais natural ainda que desse um pulo no Grande Bazar.
No presente,  iremos reencontrá-lo como dono da loja de games e objetos nerds – a Além da Imaginação. E será conhecido como Lúcio Sorriso. E Sorriso é o apelido debochado que os frequentadores da loja lhe deram, justamente porque se trata, nos dias de hoje, do cara mais mal-humorado que já se viu atendendo o público. Mas, não tinha essa marca azeda, naqueles anos, principalmente em sua exploração pelo Grande Bazar. Pelo contrário, estava animadíssimo por estar conhecendo aquele cenário de histórias mágicas.
 Podia-se dizer que era um cara que sempre tinha a esperança de encontrar algum tesouro oculto “nas dobras e disfarces do tempo” (a expressão é de um ensaio que ele havia escrito na universidade).
Sua transformação talvez (ele não terá o hábito de falar sobre isso) tenha a ver com algo que irá acontecer exatamente naquele dia em que atravessou o portão de entrada no Grande Bazar. Ele havia se distraído apreciando objetos pitorescos, farejando os aromas de um outro mundo – que pairam em toda a Istambul, mas é ainda mais impregnado e difícil de decifrar no Grande Bazar – e, quando viu, havia se metido na  parte mais antiga do suk. Estava diante de uma pequena tenda, onde entrou.
Nunca saberia dizer o que o tinha atraído ali. Não se tratava de uma tenda diferente; pelo contrário, tinha um jeito ordinário, miúdo, era apertada, algo imersa na penumbra, e o cheiro ali dentro o fez se lembrar dos fundilhos de alguns camelos que havia montado no Egito, semanas antes. 
Talvez, tivesse na cabeça demorar-se apenas alguns minutos. Ou segundos. De fato, na hora, não diria que fora atraído, mas que entrara ali como poderia ter entrado na tenda ao lado, ou em nenhuma. Pensar em algum tipo de atração foi algo que veio muito, muito depois.
Era uma tenda de lâmpadas de azeite. Havia as de latão, as de cobre, as de estanho, todas, mal ou bem, reproduzindo o que um turista imaginoso pensaria em comprar, como se estivesse levando uma Lâmpada de Aladim. Mas, o homem que o recebeu dentro da tenda logo desfez o encanto:
- Não há lâmpadas encantadas aqui – disse o sujeito sorrindo, em inglês.
Túnica branca, calças verdes, muito largas e ambas de uma seda amassada, típica da região. Calçava sandálias de couro cru. Tinha mais de sessenta anos, mas Lúcio não foi capaz de lhe precisar a idade. Pele bastante clara, olhos entre verdes e cor de tijolo, cabelos grisalhos, presos no alto da cabeça num coque, barba e bigodes compridos. O que imediatamente chamou a atenção de Lúcio foram as tatuagens que ele tinha nas costas das mãos.
E, em ambas as mãos, o mesmo desenho de uma cobra engolindo o próprio rabo. Uma cobra com olhos vermelhos, faiscantes, expressão voraz e absolutamente privada de sentimentos. Puro instinto e ferocidade.  Tratava-se de um símbolo milenar, e Lúcio já havia esbarrado com ele algumas vezes. Era chamado de Uróboro.
O dono da loja apresentou-se como Mehmedi. Educadamente, como todo lojista em Istambul, insistiu que  Lúcio, mesmo que não lhe interessasse comprar nada, se sentasse nas almofadas, que cobriam um recanto da tenda, e tomasse chá com ele. Foi o que o jovem arqueólogo fez, colocando de lado sua mochila de lona.
Lúcio já havia recusado inúmeros daqueles convites,  de outros comerciantes do Grande Bazar, mas resolveu aceitar aquele. Justamente aquele.
- Não estou mesmo interessado em lâmpadas – lamentou Lúcio.
Mehmedi sorriu e serviu o chá numa taça. Lúcio aspirou o perfume do chá – era delicioso. Teve uma sensação de bem-estar absoluto, naquela tenda. E foi assim, relaxado, que conversou com Mehemedi. O comerciante fez questão de saber de onde ele era e o que  viera fazer na Turquia:
- Turismo... Explorações ... Estudo ... – respondeu Lúcio. – Um pouco cada.
- Ah, meu amigo. Então, o suk é o lugar certo. E se não vai mesmo comprar uma lâmpada, talvez eu possa lhe oferecer uma outra coisa.
Sem esperar a resposta de Lúcio, Mehemedi curvou-se sobre uma pequena mesa, bastante baixa, entre as almofadas – que Lúcio, bem mais tarde, consideraria que estivera ali, arrumada, aguardando somente a oportunidade certa. Ergueu então uma toalha de seda negra, sob a qual havia uma pequena caixa de madeira escura. Havia algo gravado em dourado na tampa, que, ao olhar de Lúcio, pareceu, à primeira vista, um “D”. Olhando melhor, reparou que a linha que formava a letra era o corpo de uma serpente que também engolia seu rabo, na base do “D”. Sentiu um calafrio e certa aversão àquela figura.
Mehemedi abriu a caixa, e dentro dela havia três dados de bronze.
Por todo o tempo, acompanhando os gestos de seu anfitrião, Lúcio ficara como que magnetizado pelas tatuagens nas mãos de Mehemedi, como se as serpentes também se movessem. Na hora, sorriu, desdenhando a ilusão, e tentou focar a vista. Mas, como se repelindo sua reação, sentiu uma pressão crescente nas têmporas, e seu coração começou a dar saltos repentinos.
- O que são? – perguntou Lúcio. As faces dos dados não tinham números, mas símbolos que ele desconhecia.
- Um jogo... – respondeu Mehemedi.
- E como se joga?
- Ah, sim, as regras. Estão perdidas. Ninguém mais as conhece. Quer pegá-los? – perguntou o comerciante, suspendendo a caixa na altura das mãos de Lúcio. – Veja como rolam na sua mão como se ganhassem vida.
Lúcio deu uma risada, acreditando que o lojista procurava intrigá-lo para  conseguir vender-lhe os dados. Apanhou-os  e os rolou de uma mão para outra. O ruído que faziam, ao se chocarem, lhe lembrou o guizo de uma cascavel.
-  Parecem bastante antigos... – observou Lúcio. – Devem valer muito.
- Fique com eles, meu amigo.  
- Minha nossa! Imagine se tenho dinheiro para algo assim.
- Um presente!
- Como? – surpreendeu-se Lúcio. Mas, logo recuperou-se. Pensou e replicou: - Não, não posso! – disse, devolvendo os dados à caixa. – Não devo aceitar um presente tão caro. Além do mais, parecem ser uma relíquia... Com valor arqueológico. São autênticos, não são?
- Únicos!
- Bem, as autoridades não vão permitir que saiam do país.
- Não creio que o jovem vai ser incomodado por isso ... – riu-se Mehemedi.
- Mesmo assim, não, obrigado – disse Lúcio, levantando-se.
- Pelo menos, veja o que mais tenho aqui na loja. Não quer um lenço de seda? Tenho pequenas bijuterias feitas de osso de camelo por um preço bastante razoável.
Acabou não comprando coisa alguma. Saiu apressado e sentiu-se melhor do lado de fora. Se bem que...
Na saída, estranhara algo, que passou de relance por seus olhos, mas só depois se deu conta do que era. Só depois, no hotel modesto onde se instalara, descobriu, dentro da sua mochila, a caixa de madeira preta, com o uróboro na tampa –  era mesmo uma preciosa gravação a ouro. Os três dados estavam ali dentro. Então, se deu conta do que o perturbara, quando se despediu de Mehemedi, apertando sua mão na saída da tenda. Ainda voltou ao Bazar, buscando pelo comerciante de lâmpadas, para lhe devolver a caixa e os dados, mas, enredado no labirinto de tendas, sem recordar ao certo as ruas que percorrera antes,  jamais conseguiu encontrá-lo.  
Pensou em entregar os objetos às autoridades, ou talvez ao Museu, mas teve receio das desconfianças, da conhecida brutalidade da polícia local, que não seguia o preceito de que uma pessoa é inocente até que se prove em contrário. Seria acusado de roubo, mesmo que fosse um ladrão arrependido, devolvendo as relíquias. E, o tempo todo, perseguiu-o a certeza de que, de todas as alternativas, a pior, a mais arriscada, a que pareceria mais criminosa foi a que escolheu. Sabia que seria atirado na cadeia – se fosse pego no aeroporto - sob a suspeita de ser um contrabandista de antiguidades, algo odiado em países como a Turquia, que tanto sofreram com pilhagens estrangeiras sobre seu patrimônio arqueológico. E sabia que ninguém se preocuparia com a formalidade de contatar a embaixada brasileira para informa-la da detenção. Ele simplesmente sumiria. Era o risco.
No entanto, fez o que fez, e talvez o tenha feito perturbado pela visão da mão de Mehemedi, de ambas as mãos, no momento em que deixou a tenda, e se na hora não entendeu o que o incomodara, horas depois, a visão se tornara evidente. As serpentes, os uróboros tatuados ... haviam desaparecido das costas das mãos dele.
Como se tivessem seguido os dados.



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